Publicado em 24 de março de 2015
Besouro (Ailton Carmo) foi o maior capoeirista de todos os tempos. Um menino que -- ao se identificar com o inseto que ao voar desafia as leis da física -- desafia ele mesmo as leis do preconceito e da opressão. Passado no Recôncavo dos anos 20, Besouro é um filme de aventura, paixão, misticismo e coragem. Uma história imortalizada por gerações, que chega aos cinemas com ação e poesia no cenário deslumbrante do Recôncavo Baiano.
Quando Manoel Henrique Pereira nasceu, não havia nem dez anos que o Brasil tinha sido o último país do mundo a libertar seus escravos.
Naqueles tempos pós-abolição nossos negros continuavam tão alijados da sociedade que muitos deles ainda se questionavam se a liberdade tinha sido, de fato, um bom negócio. Afinal, antes de 1888 eles não eram cidadãos, mas tinham comida e casa para morar. Após a abolição, criou-se um imenso contingente de brasileiros livres, porém desempregados e sem-teto. A maioria sem preparo para trabalhar em outros serviços além daqueles mesmos que já realizavam na época da escravatura. E quase todos ainda sem a plena consciência de sua cidadania. O resultado desse quadro, principalmente nas regiões rurais, onde estavam os engenhos de açúcar e plantações de café, foi o surgimento de um grande contingente de negros libertos que continuavam, mesmo anos após a abolição, submetendo-se aos abusos e desmandos perpetrados por fazendeiros e senhores de engenho.
Assim era sociedade rural brasileira de 1897, ano em que Manoel Henrique Pereira, filho dos ex-escravos João Grosso e Maria Haifa, nasceu na cidade de Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano.
Vinte anos depois, Manoel já era muito mais conhecido na cidade como Besouro Mangangá - ou Besouro Cordão de Ouro -, um jovem forte e corajoso, que não sabia ler nem escrever, mas que jogava capoeira como ninguém e não levava desaforo para casa. Como quase todos os negros de Santo Amaro na época, vivia em função das fazendas da região, trabalhando na roça de cana dos engenhos. Mas, ao contrário da maioria, ele não tinha medo dos patrões. E foram justamente os atritos com seus empregadores - e posteriormente com a polícia - que deixaram Besouro conhecido e começaram a escrever a sua imortalidade na cultura negra brasileira.
Há poucos registros oficiais sobre sua trajetória, mas é de se supor que a postura pouco subserviente do capoeirista tenha sido interpretada pelas autoridades da época como uma verdadeira subversão. Não por acaso, constam nas histórias sobre ele episódios de brigas grandiosas com a polícia, nas quais ele sempre se saía melhor, mesmo quando enfrentava as balas de peito aberto. Relatos de fugas espetaculares, muitas vezes inexplicáveis, deram origem a seu principal apelido: Mangangá é uma denominação regional para um tipo de besouro que produz uma dolorosa ferroada. O capoeirista era, portanto, "aquele que batia e depois sumia". E sumia como? Voando, diziam as pessoas...
Histórias como essas, verdadeiras ou não, foram aos poucos construindo a fama de Besouro. Que se tornou um mito - e um símbolo da luta pelo reconhecimento da cultura negra no Brasil - nos anos que se sucederam à sua morte.
Morte que ocorreu, também, num episódio cercado de controvérsias. Sabe-se que ele foi esfaqueado, após uma briga com empregados de uma fazenda. Registros policiais de Santo Amaro indicam que ele foi vítima de uma emboscada preparada pelo filho de um fazendeiro, de quem era desafeto. Já a lenda reza que Besouro só morreu porque foi atingido por uma faca de ticum, madeira nobre e dura, tida no universo das religiões afro-brasileiras como a única capaz de matar um homem de "corpo fechado".
E Besouro, o mito, certamente era um desses.